quinta-feira, janeiro 04, 2018

VALSA 
A QUATRO TEMPOS

Tempo primeiro

Nos idos anos 50 entrei pela primeira vez numa escola que me marcou, em bem, para a vida, ainda instalada numa daquelas mansões, parece-me que já não resta nenhuma, na avenida dos três As, a António Augusto de Aguiar, em Lisboa.
Recordo um salão grande, onde se realizou pelo menos uma cerimónia de entrega de prémios aos alunos que se distinguiram em anos anteriores, aí me apresentei eu todo ufano e orgulhoso para receber um prémio por ter sido o melhor aluno no segundo ano do então ensino liceal.
Quando chamaram pelo meu nome avancei com passo decidido em direcção à mesa de honra, mas esqueci-me que tinha a minha linda samarra toda nova pelos ombros, manifestamente não estava a par do protocolo destas situações, tive de a tirar para o sr. Heitor, director e avô do actual ministro do ensino superior, me colocar a medalha na lapela do casaco, para mim uma estreia absoluta.
Ainda hoje a tenho, a medalha, sou fiel ao meu passado. Anos depois, já nas instalações actuais na quinta das teresinhas e na conclusão do sétimo ano, foi-me entregue uma placa comemorativa de melhor aluno da escola e um emblema de ouro do colégio Valsassina, esta era a escola. Deixemo-nos de falsas modéstias, orgulho vaidoso !
Claro que com estes pergaminhos desde cedo conquistados, passei a ser uma referência de aluno de bom nível, o que levou a uma sugestão/convite de um colega meu, o Luis, para participar numa sessão de não sabia eu bem o quê, numa moradia ali bem junto à avenida duque de ávila, teria eu os meus doze/treze anos.
Aceitei mais para não parecer ingrato do que por grande vontade de lá ir, mas, sim, estive nessa reunião. Não sei já a sequência e boa ordem do que por lá se passou e ouvi, tenho ideia de que houve lugar a uma oração, não sei se eucaristia, ao apelo ao comportamento exemplar e qualidade de aprendizagem, do valor do conhecimento, da utilidade do serviço à comunidade, valores que tenho desde sempre e me foram transmitidos na família. Nada de parangonas de propaganda, apenas seriedade, mas discreta.
O Luís veio a doutorar-se em ciências da educação e família pela universidade de navarra, nos últimos anos da sua vida dedicou-se ao ensino, universidade católica e colégios fomento, que como professor quer como investigador; era irmão, mais velho, de Jorge Margarido Correia, que viria a ser ordenado Padre em 1971 e é Sacerdote da Prelatura Pessoal da Santa Cruz e Opus Dei.
Sim, aquela sessão na mansão da duque de ávila era uma organização da Obra, da Opus Dei, nunca aderi, conheço algumas pessoas, umas melhores do que outras, muito empenhadas, eu fico-me pelo respeito, por considerar o que de bom e o que de menos bom tem, aqui já na sua condição e enquanto aparelho informal de poder, não sei se será mesmo só informal.
Não respondi à chamada, não foi esse o meu fado. Segui o meu caminho.

Tempo segundo

Bem jovem, trinta e três aninhos, casado e pai de cinco filhos, sim, a idade em que Cristo foi pregado na cruz, eu não tive a mesma sorte, no sentido de destino, como está bem de ver. No âmbito de um concurso, agora é um nome mais ridículo, chamam-lhe procedimento concursal, fui nomeado para um posto de direcção na representação do organismo responsável pela promoção do comércio externo, missão alargada na prática também ao conjunto da economia portuguesa e em estreita colaboração com análoga representação do turismo nacional. Em Genéve.
Na Suiça aprendi e pratiquei conceitos essenciais mas que no Portugal já post 25 de Abril era muito difícil de conjugar, rigor, organização, método, pontualidade. A primeira vez que fui convidado para jantar, numa feira em Zurique, eram seis da tarde. Aceitei de bom grado, perguntei onde e a que horas, responderam-se aqui e agora. Seis da tarde, a jantar num daqueles barcos no lago de Zurique, percebi que era assim, pronto, porque não haveria de ser.
Fui feliz. Tive como última residência um apartamento num pequeno prédio de apenas quatro, em pleno campo ao sul da cidade, já a caminho da fronteira francesa, ali bem perto. Uma daquelas aldeias lindas, calmas, bem tratadas, com uma identidade própria, nos arredores da cidade grande. Filhos a irem a pé para a escola, por vezes de carro, passeios de bicicleta por aqueles caminhos estreitos a espreitar as vacas, um vizinho americano, outro francês, um suíço e nós. Um pequeno jardim, mas suficiente para se almoçar cá fora, o pôr do Sol atrás do Jura, ali ao lado.
Decorridos cinco anos, ainda mal tinha acabado de pôr os cortinados nessa nova casa, fui abordado para seguir para Bruxelas, em funções idênticas. Claro que comuniquei o que se passava ao então embaixador de Portugal na Missão de Portugal junto da EFTA e do GATT, a que estava formalmente ligado e a quem respondia na qualidade de detentor de estatuto diplomático.
Na mesma semana, um convite para almoçar com ele, o senhor embaixador, com o mesmo nome que eu ou melhor, eu com o mesmo nome que ele, que isto das precedências existem para serem respeitadas. Pensei no que me disse, ouvi quase incrédulo da sua boca, se quiser podemos coloca-lo numa organização internacional da ONU aqui em genéve, seria bom para o país que houvesse mais portugueses em postos de alguma responsabilidade, eu, ele, gostaria que você pudesse aceitar a ideia, Bruxelas poderia esperar.
Não, Bruxelas não pôde esperar, o processo de nomeação estava em marcha e, dada a então orgânica e estatuto das representações externas de Portugal, ainda arranjava alguma crispação entre os ministérios do comércio e dos negócios estrangeiros de que sairia um perdedor óbvio, eu.

Tempo terceiro

Antes de partir para Bruxelas os meus vizinhos de Bernex, assim se chamava a minha aldeia, ofereceram-me um pequeno e simples cocktail de despedida e só então um deles, o suíço, me disse para ter cuidado, a capital belga ele conhecia bem, tinha lá vivido uns anos, não se podia confiar neles como se de suiços se tratassem. E mais não disse, mas tinha dito quase tudo. A minha opinião foi muito diferente, gostei muito de Bruxelas, reatei assim o ciclo iniciado no Congo, da colónia para a metrópole apenas vinte e cinco anos mas que diferença de perspectiva.
Fiz a viagem para Bruxelas de carro, não é assim tão longe, no dia 11 de Julho de 1982. A partir de uma certa altura comecei a acompanhar pela rádio o arranque da final do campeonato do mundo de futebol, em Madrid. Simpatizante da Itália, não podia ser de outro modo, na segunda parte a Itália marcou três golos, a Alemanha apenas um, já nós estávamos no hotel no destino que era o nosso, Bruxelas. O Dino Zoff tinha 40 anos e foi o guarda-redes italiano, o Rossi o melhor marcador do campeonato.
Itália campeã do Mundo, venceu a Alemanha por 3-1. Ganhámos, ganhámos, festejei com dois filhos, a alegria era grande, tão grande que fomos festejar para o Îlot sacré, toda aquelas pequenas ruas na zona da Grande Place pejadas de italianos entusiastas, residentes emigrantes e turistas, muitas bandeiras italianas, muita cerveja e um só grito, Italia, Italia, Italia. Foi bonito de se ver, foi bonito de viver, os latinos tomaram conta da cidade. O CR 7 ainda não tinha nascido.  
Voltei a festejar a conquista de uma campeonato, agora da Europa, em 2016, tinham passado trinta e quatro anos, Portugal a cantar no Marquês de Pombal, eu também lá, com alguns filhos e já alguns netos. Trinta e quatro anos, o tempo passa e tem de se respeitar, o tempo, na justa medida em que saibamos viver com ele, nele, não demasiado cedo nem demasiado tarde.
Isto começa bem, pensei eu naquele dia, em Bruxelas.
Se bem começou, assim continuou, a experiência adquirida em genéve permitia-me uma maior certeza e segurança, apoiado por uma equipa muito dedicada, dois, por sinal os dois homens, seriam mais ou menos da minha idade, um até era mais velho, já cá não estão.
A Luisa C. portuguesa como eles e de uma família bem conhecida ligada ao vinho do porto, com funções mais diferenciadas e meu braço direito, a Linda, belga e a Chantal, filha de emigrantes portugueses, não sei se mais portuguesa ou mais belga. Muito trabalho, empenho absoluto, o Grão Ducado do Luxemburgo também no raio e âmbito da nossa actividade, um tempo de transição, tanto lhes devo, razão de sobra para os manter bem presentes. Aqui.
Algumas empresas portuguesas em Bruxelas, excelentes no apoio à promoção dos vinhos portugueses, um restaurante português de bom nível, onde se realizava tudo o que fosse mais institucional da nossa responsabilidade, um embaixador activo, os diplomatas de inexcedível cortesia para comigo, talvez exuberante no que respeita à representação social do país.
Ainda a Missão de Portugal junto da Nato, a REPER, representação permanente de Portugal junto da CEE, mas também aqui chegou o momento de partir, um problema muito sério ocorrido em Paris aconselhava a minha transferência para lá. Era 1986.
Sabedor dessa possibilidade, o embaixador chefe da REPER falou-me no decorrer de um almoço, assim a modos que de despedida, que tinha muito gosto em me colocar nos serviços da Comissão, agora que Portugal tinha aderido era fundamental ter lá bons funcionários portugueses, eu poderia fazer parte do lote, bastava que eu quisesse.
Longe de ter certezas, já era conhecida a longa burocracia da comissão, alguns eurocratas que por lá fui conhecendo não me inspiravam particularmente, os jogos internos de poder e contra poder entre os diversos estados, enfim, se fosse hoje teria dito que sim, na época disse não.
Zarpei para Paris, um ano diabólico se seguiu acumulando ambas as delegações, Bruxelas, ainda, Paris, também. Em Paris a pensar no que havia para fazer em Bruxelas, em Bruxelas a pensar no que havia para fazer em Paris, viagens constantes, voava pela autoestrada entre as duas cidades, duas horas de viagem, mais uns minutos apenas, mais de trezentos quilómetros, uma loucura, a cabeça numa cidade, na outra, por vezes já em nenhuma, mais tarde, exausto.

Tempo quarto

Passada a época de Paris, o regresso a Portugal.
Convite para continuar no que agora se chama agência, mas preferi seguir o rumo empresarial, por isso a empresa a que tinha sido requisitado quando fui para Genéve.
Privatizada que foi quase logo, optei por aceitar ir para uma associação empresarial no Porto, do Porto, presidente dono de uma empresa que tinha estado numa feira em Paris com o meu, nosso, apoio, participação que correu muito bem e me deixou referenciado.
Já em Lisboa, uma orientação para o Japão, novo espaço, nova cultura, novas perspectivas, articulação com as empresas portuguesas trabalhando ou querendo trabalhar no Japão, no mercado japonês, com as empresas japonesas em Portugal, em particular os grandes investidores e as marcas de automóveis japoneses comercializados por cá.
Acumulando a partir de uma certa altura com alguns projectos financiados pela Europa, para simplificar a designação, mais tarde também professor convidado de uma universidade em matérias de marketing internacional e internacionalização empresarial.
Um novo desafio, uma nova perspectiva, uma nova realidade, nem sempre interessante naquele caso concreto, mas o supremo privilégio de contactar com a juventude, de ensinar algumas coisas, mas também de aprender, de me manter acordado e atento à vida.
Então no fim de uma aula a terminar cerca da hora do jantar, uma chamada à reitoria, um convite para jantar logo a seguir. Era conhecida o pendor maçónico da cooperativa de ensino proprietária daquela universidade, da minha universidade, mas foi de todo uma surpresa, junte-se a nós, seja um de nós, faremos tudo o que precisar se e quando precisar, estamos cá para sermos fraternos, irmãos, maçons. Não há almoços grátis, disse alguém. Nem jantares, senti eu. Nalguns casos poderia ter sido muito bem remunerado, talvez, mas assim sou, livre de pensar pela minha cabeça.

Opus Dei, ONU, Comissão Europeia, Maçonaria, uma valsa a quatro tempos, alguma vaidade por me terem convidado para um baile em que não dancei.


Ao romantismo da valsa prefiro a sensualidade do tango.