ANGOLA, em marcha lenta
ÁFRICA tem destas coisas, uma boas, más outras, mas uma em particular nos acompanha, não se esquece. Pisei terra africana pela primeira vez há setenta anos, não me recordo, de tão criança eu era, então e ainda.
Angola, sim, por ela viajei ainda menino, a primeira vez atravessei-a de automóvel de luanda ao congo, como descrito algures, a segunda de comboio da fronteira com o congo até ao lobito e à sua restinga, barco Pátria para Lisboa, o regresso primeiro à aldeia natal, ao puto como por lá se dizia, lisboa logo no ano seguinte. Ambas inesquecíveis, mal sabia eu então que me haviam de marcar para sempre, dá-me ideia que todos os dias ou quase lá vou eu por aqueles espaços imensos, pelas picadas, por uma grandeza que tem algo de absoluto e total.
A primeira vez que lá voltei, agora já numa missão profissional estava eu nos meus cinquenta e três anos, imaginem, quarenta e cinco anos depois de por lá ter feito a segunda dessas duas grandes viagens, fiquei alojado num pequeno hotel cujo nome já não sei recordar.
Levantar bem cedo, o mata bicho devia estar já lá em baixo na pequena sala, fui à janela, pouca luz ainda, o dia nascia daquele maneira única como nasce em áfrica, um murro no estômago, um tipo com a farda militar e estropiado de uma perna lava-se num pequeno charco no meio do largo de terra batida que a chuvada tropical da noite lá tinha deixado. Um militar que tinha arriscado a vida em defesa de não sei que causa, embora ainda vivo mas sem a parte inferior da perna, sei lá como se chama a parte inferior da perna de um soldado, a lavar-se num charco enlameado numa das ruas principais da capital de angola.
Nesse primeiro instante aprendi mais sobre as condições de vida em luanda, em angola, do que em qualquer estudo sociológico dos melhores académicos. Era mil novecentos e noventa e sete, passaram mais de vinte anos, pouco mudou, a opulência dos ricos e a miséria da imensa maioria dos angolanos, lá estava todinha, se não pior ainda, a última vez que lá fui.
Não sei se nessa missão se numa seguinte conheci algumas pessoas ligadas ao mundo dos negócios, porque mais diferenciada dada a sua condição de mulher, a presidente da associação das mulheres empresárias de angola. Convidado para o seu jantar de aniversário, quis comprar umas flores para lhe oferecer, no hotel sugeriram-me um mercado ao ar livre algures por ali. Lá fui e de facto havia uma banca onde uma jovem de olhos brilhantes e pele bem preta, luzidia, vendia umas bugigangas mas também flores. Simpática, no acto de pagamento reparei que tinha um colar com uma medalha. Gravado na medalha, um nome, um nome de homem, tenho ideia de que se chamava Ben, talvez diminutivo de Benjamim, mas isso não interessa muito neste caso. À laia de despedida e agradecendo a gentileza, desejei-lhe saúde e cumprimentos para o Ben, ao que ela respondeu à beira das lágrimas, morreu, morreu na guerra. End of story, foi um dos poucos KOs da minha vida. Poucos mas bons.
Nessa altura, fins da década de 90, ainda hoje talvez, rareavam produtos alimentares, os que havia eram quase todos importados, caríssimos para a generalidade da população. Apesar disso, ou talvez por isso mesmo para sugerir aos locais nova dieta alimentar, bem alternativa, organizaram no cacuaco ali ao norte de luanda mas bem perto, umas jornadas gastronómicas, qual não foi o meu espanto quando na TPA, televisão pública de angola logo do estado logo do governo logo sob o comando de quem mandava tudo em tudo, passam uma reportagem, espetada de ratos uma das opções, se calhar a melhor mas só me lembro dessa. Razão de sobra para um velho, um daqueles admiráveis velhos africanos, o mais velho como são tratados com todo o respeito, dizer ao repórter que havia falta de tudo, no tempo do colono é que as coisas funcionavam melhor, ele tinha já idade para ainda se lembrar com saudade do tempo do colono, angola era independente há um quarto de século.
No decorrer de uma dessas missões não respeitei um princípio básico de segurança por aquela cidade, ainda hoje e mesmo ainda mais, não por nada no bolso de trás das calças. Ao sair do táxi à porta do hotel pus a carteira com uns dólares, pouco pois regressava a lisboa no dia seguinte, no dito bolso, senti um deslizar no seu interior, voltei-me para trás a tempo de ver um rapazito aa correr pela rua abaixo com a minha carteira na mão, com ela os dólares mas sobretudo o passaporte. Chamei, gritei, fui eficaz, o miúdo rapou os dólares da carteira, deitou-para o chão, o passaporte lá dentro, estava salvo.
Missão cumprida, podia regressar a Portugal na data marcada, trazer comigo uma angola ainda a descobrir-se.
Pepetela, prémio Camões em 1997, iria escrever na sua “Geração da Utopia” a desilusão existente em Angola depois da independência, Agualusa mais tarde, também prémio, mas Fernando Namora em 2013, alguns outros dariam, estão a dar, a sua visão para uma nova identidade angolana em marcha, ainda.
Escreveu Pepetela no seu Mayombe, “a minha vida é o esforço de mostrar a uns e a outros que há sempre lugar para o talvez”.
Angola, talvez sim.
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