ANGOLA,
as gasosas e o resto
Luanda, ainda fins década de 90, séc. XX.
Uma missão que era suposto ser, mas não foi, a última.
Para despedida dos monitores e dos formandos, de todos os países da lusofonia
africana ali concentrados em Luanda para o efeito, uma almoçarada junto à foz
do rio Cuanza, limite sul autorizado sem escolta militar para quem vinha de
Luanda.
Não sei quem teve a ideia mas certo é que me foi dada
a missão de motorista num dos carros que integravam o grupo, talvez uns sete ou
oito, devíamos ser umas trinta pessoas no total. Tive as minhas reservas para
concordar com a ideia, seria o único condutor branco naquele grupo, era dia de
gasosa, quinta-feira é sagrada, há que preparar as reservas para a cerveja do
fim-de-semana a seguir, “estava na cara” que nos haviam de mandar parar, e
mandaram.
Uns tantos agentes da polícia, passaporte e carta de
condução pedidos e apresentados, diabo, no passaporte estavam os dólares, os
meus dólares que rapidamente foram acariciados por um dos agentes. A olhar para
mim e eu a olhar para ele e para os meus dólares. Examinou longamente o
passaporte, de trás para a frente, da frente para trás, devagar, devagarinho,
tudo em ordem e eu, bem, eu, caladinho, a deitar contas à vida. Os angolanos
viajando comigo, esses, apesar de serem todos funcionários públicos bem
colocados na hierarquia, silenciosos.
Para satisfação de todos e com grande educação lá nos
deram autorização para seguir, tenho impressão de ter visto na expressão algum
gozo pela apreensão que nos causaram. Havia razões para isso, horas mais tarde
um dos formadores armou-se em parvo e resolveu dar uns passos na ponte sobre o
rio, o que já era proibido, alguns militares numa guarita a garantirem a
segurança. Foi preso, claro, ainda reclamou não sei em que moldes, passou a
noite também não sei em que instalações acompanhado por guardas e só no dia
seguinte, depois de não sei quantos telefonemas da parte do ministério, voltou
à liberdade.
A tarde foi alegre e divertida, comida, bailares,
vinho e cerveja, no rio ali mesmo ao lado parece que havia crocodilos mas não
vieram ter connosco, muitos brindes como eu gosto e regresso antes de cair a
noite, o pôr-do-sol tropical é bem cedo. No terreiro, uma daquelas velhas
bonitas de áfrica, esperta, ladina e bem disposta, sentada no chão ou de
cócoras, já não sei bem, me disseram ser a mãe do general de bigode, baixo e
fininho, então braço direito militar do senhor que mandava em tudo, cada vez
mais em tudo à medida que os anos foram passando.
A segurança em luanda era mais frágil no tal dia da
gasosa, os polícias mandavam parar os carros por qualquer razão ou sem ela, não
importava, o essencial era garantir a receita para as despesas no
fim-de-semana, cerveja à cabeça e o resto depois. Prática generalizada, já
ninguém era apanhado de surpresa, uns dólares de preferência ou uns kwanzas
também, tudo tranquilo, sem problema.
Mais sério era o resto, era haver muitos carros com os
faróis cimentados à chapa do carro, porquê perguntei eu ingénuo, ora essa está
bem de ver, para não os roubarem. Pior ainda o que acontecia por vezes, como me
contaram a propósito de um português que tinha o seu carro tipo jeep, novinho
em folha na garagem a céu aberto do quintal, rodeado de muros altos e portão de
chapa de aço. Manhã cedo, ao sair de casa, dois polícias logo ali a mandarem-no
parar, pois claro, não tinha lâmpadas dos faróis, um perigo para quem conduz de
noite, ninguém o vê, pode matar alguém, multa muito pesada, eventual prisão.
Conversa puxa conversa, o diálogo deve sempre acabar em bem para todos, assim o
manda o pragmatismo e o bom senso, caso contrário pode dar para o torto e já se
sabe, sombra de vara torta nunca se endireita.
Não sei quantos, mas parece que foram muitos os
dólares que tiveram de agradecer aos zelosos polícias a sua boa atenção e
melhor cuidado, eles mesmos tinham
roubado as lâmpadas, mas
parece que bem mais do que custavam uns faróis novos do Hummer, era essa a
marca do carro, então muito em moda naquelas paragens, época em que a
importação de jeeps era uma das maiores verbas da pauta de importação do país e
se estava longe de imaginar que a marca viria a ser vendida a uma empresa
chinesa e a desaparecer pouco depois.
Sic
transit gloria mundi !
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