ANGOLA,
as crianças do Mussulo e o general
Imperativo ir passar um fim-de-semana ao Mussulo.
Há vinte anos, mais coisa menos coisa, um paraíso tropical
tão perto de luanda, uma pequena ilha com uma costa aberta ao Atlântico, a
outra face ao continente, aí um mar calmo e de águas temperadas, uma maravilha,
único resort bem simples mas muito agradável, ali mesmo ao lado da praia,
melhor diria na praia. Habitantes, poucos, um pouco mais para o sul da ilha.
Uma zona de bar e restaurante, com boas vistas para o
braço de mar que separa a ilha de terra, a praia, a calma e o calor de áfrica.
O bar tinha nesses dias como principais clientes um grupo de ucranianos que por
ali se embebedavam calmamente, cerveja atrás de cerveja, whisky a seguir a
whisky, nas folgas que o seu trabalho permitia. Eram pilotos dos aviões antonov
que asseguravam ligações aéreas de luanda às principais cidades do país, com
alguma frequência e regularidade lá caía um, pudera, devia ser por excesso de
carga alcoólica da tripulação.
Uma certa manhã, deitado na minha toalha a secar-me do
primeiro mergulho, deixei-me adormecer e claro que passado pouco tempo estava a
ressonar para grande gáudio dos ucranianos bem perto, esses riam de mim e
convidaram-me para beber uns copos com eles. Lembrando-me de que pouco tempo antes pelas dez da manhã estava eu a beber vodka em cherkassi antes de
uma reunião com a direcção da câmara de comércio, arranjei engenho e arte para
declinar o convite, tive medo de morrer alcoólico.
As minhas estadias anteriores tinham-me ensinado que a
população precisava de tudo, de tudo mesmo, levei uma mala cheia de roupa para
as crianças do mussulo.
Manhã bem cedo, já na praia, seriam umas nove horas,
talvez um pouco mais, afastei-me com a mala, uns cinquenta metros da praia do
resort, que diabo, não me consigo lembrar do nome, mas o suficiente para não
incomodar ninguém, o que àquela hora não era difícil, a praia estava ainda
deserta.
Mal abri a mala um rapazito apareceu a correr e
dei-lhe a primeira coisa que me veio à mão, logo depois dezenas de crianças em
grande alarido e visível alegria, a mala ficou vazia num instante, era essa a
ideia. Uma das miúdas, já mais crescidita, teria uns dez anos, ficou por ali a
conversar comigo.
Chamava-se Fernanda, era a minha xará, por termos o
mesmo nome mas também como companheira, amiga, camarada, quase irmã, assim é no
brasil. Tinha acabado a instrução primária na escola da ilha, para continuar os
estudos teria de apanhar o barco todos os dias para a escola dos mais
crescidos, ali à vista mas do outro lado do braço de mar, os pais não tinham
dinheiro que cobrisse essa despesa, ia ficar por ali, não iria estudar mais.
África também é isto, pediu-me com insistência para a
trazer para Portugal, ela era boa menina, não teria problemas, gostava muito de
um dia vir a ser professora, de ensinar meninas como ela que gostassem de
aprender.
Ainda hoje tenho remorsos de a ter lá deixado, se
calhar esse gesto ter-me-ia dado a paz, a minha paz interior, ver tanto sofrimento
e dor pelo mundo, cada vez mais dor e sofrimento nesta escalada contínua de
obscurantismo que se vai apoderando dos espíritos e tantos, mas tantos e eu um
deles sem na prática conseguirmos dar um pouco ou muito ou tudo de nós para
trazermos um pouco de esperança a quem sofre muito, numa escala que temos
dificuldade em imaginar sequer.
Uma das vezes que estive no Mussulo foi num domingo,
bar aberto, perdão, bar e buffet aberto, mas de lagosta, é um facto que gosto
muito mais do marisco dos mares mais a norte, dos nossos, do que das águas
tépidas dos trópicos. Em todo o caso, às tantas chega uma comitiva de altas
personalidades, era visível que eram altas personalidades, um deles aliás, o
que parecia ser a mais alta das personalidades, bem alto e forte, assim tipo
cilindro, boa razão o designar de batólito, general batólito.
Mesa bem central, bem comeram e melhor beberam, o
general batólito era então ministro de defesa ou chefe do estado maior do
exército, não estou certo, recebia o seu homólogo da zâmbia, salvo erro. A
partir de uma certa altura um grupo de bailarinas angolanas nas suas danças
tradicionais em honra dos ilustres visitantes, aproximei-me e por ali fiquei a
ver e ouvir, sempre gostei de música africana, seus ritmos e danças.
Finda a música, na mesa das altas personalidades, tão
altas que era corrente na época frequentarem em privado hotéis, os melhores,
bares, os melhores, restaurantes, ainda e sempre os melhores, recebendo depois
as facturas em casa, nos ministérios ou nos gabinetes, mas quantas vezes se
perdiam, os correios funcionavam muito mal e parece que não melhoraram muito
desde então. Em Angola mas não só, um pouco por todo um certo tipo de mundo e
de alguns mundos que nele vivem à custa de muitos outros, de quase todos os
outros.
Na mesa das altas personalidades, ia eu a dizer,
começaram a jogar cartas e eu a beber uma cerveja, já sentado numa mesa
próxima, quando o general batólito pede a um segurança para me perguntar se eu
queria também jogar, precisavam de mais um jogador. À sueca, seria.
Muito simpático, se me revelou ser o tal general, como
os seus convidados não falavam português fui então eu o seu principal
interlocutor, falávamos e jogávamos, os outros dois iam jogando, conhecia bem
Portugal, sobretudo o norte do país com quem tinha relações frequentes, não sei
de que natureza, no mundo empresarial, interessou-se em saber o que estava eu a
fazer em angola, acabou sendo uma tarde agradável e muito surpreendente, ainda
agora é uma figura muito importante, mas mesmo muito importante do estado angolano,
que subiu depressa à posição que tem na hierarquia do poder e por lá se tem
conseguido manter.
Nem quero ainda hoje acreditar que o fiz, mas foi
assim que dei por mim a jogar à sueca como parceiro do general, numa tarde
prazenteira de um domingo tropical, na ilha do mussulo, lá onde as crianças
pobres não tinham dinheiro para apanhar o barco para irem à escola.
O general também é meu Xará, como a minha amiga, a
pequena Fernanda.
Uma só ilha dois xarás, uma menina e um general, é
obra !
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