VALSA
A QUATRO TEMPOS
Tempo
primeiro
Nos idos anos 50 entrei pela primeira vez numa escola
que me marcou, em bem, para a vida, ainda instalada numa daquelas mansões,
parece-me que já não resta nenhuma, na avenida dos três As, a António Augusto
de Aguiar, em Lisboa.
Recordo um salão grande, onde se realizou pelo menos
uma cerimónia de entrega de prémios aos alunos que se distinguiram em anos
anteriores, aí me apresentei eu todo ufano e orgulhoso para receber um prémio por
ter sido o melhor aluno no segundo ano do então ensino liceal.
Quando chamaram pelo meu nome avancei com passo
decidido em direcção à mesa de honra, mas esqueci-me que tinha a minha linda samarra
toda nova pelos ombros, manifestamente não estava a par do protocolo destas
situações, tive de a tirar para o sr. Heitor, director e avô do actual ministro
do ensino superior, me colocar a medalha na lapela do casaco, para mim uma
estreia absoluta.
Ainda hoje a tenho, a medalha, sou fiel ao meu
passado. Anos depois, já nas instalações actuais na quinta das teresinhas e na
conclusão do sétimo ano, foi-me entregue uma placa comemorativa de melhor aluno
da escola e um emblema de ouro do colégio Valsassina, esta era a escola. Deixemo-nos
de falsas modéstias, orgulho vaidoso !
Claro que com estes pergaminhos desde cedo
conquistados, passei a ser uma referência de aluno de bom nível, o que levou a
uma sugestão/convite de um colega meu, o Luis, para participar numa sessão de
não sabia eu bem o quê, numa moradia ali bem junto à avenida duque de ávila,
teria eu os meus doze/treze anos.
Aceitei mais para não parecer ingrato do que por
grande vontade de lá ir, mas, sim, estive nessa reunião. Não sei já a sequência
e boa ordem do que por lá se passou e ouvi, tenho ideia de que houve lugar a
uma oração, não sei se eucaristia, ao apelo ao comportamento exemplar e
qualidade de aprendizagem, do valor do conhecimento, da utilidade do serviço à
comunidade, valores que tenho desde sempre e me foram transmitidos na família. Nada
de parangonas de propaganda, apenas seriedade, mas discreta.
O Luís veio a doutorar-se em ciências da educação e
família pela universidade de navarra, nos últimos anos da sua vida dedicou-se
ao ensino, universidade católica e colégios fomento, que como professor quer
como investigador; era irmão, mais velho, de Jorge Margarido Correia, que viria
a ser ordenado Padre em 1971 e é Sacerdote da Prelatura Pessoal da Santa Cruz e
Opus Dei.
Sim, aquela sessão na mansão da duque de ávila era uma
organização da Obra, da Opus Dei, nunca aderi, conheço algumas pessoas, umas
melhores do que outras, muito empenhadas, eu fico-me pelo respeito, por
considerar o que de bom e o que de menos bom tem, aqui já na sua condição e
enquanto aparelho informal de poder, não sei se será mesmo só informal.
Não respondi à chamada, não foi esse o meu fado. Segui
o meu caminho.
Tempo
segundo
Bem jovem, trinta e três aninhos, casado e pai de
cinco filhos, sim, a idade em que Cristo foi pregado na cruz, eu não tive a
mesma sorte, no sentido de destino, como está bem de ver. No âmbito de um
concurso, agora é um nome mais ridículo, chamam-lhe procedimento concursal, fui
nomeado para um posto de direcção na representação do organismo responsável
pela promoção do comércio externo, missão alargada na prática também ao
conjunto da economia portuguesa e em estreita colaboração com análoga
representação do turismo nacional. Em Genéve.
Na Suiça aprendi e pratiquei conceitos essenciais mas
que no Portugal já post 25 de Abril era muito difícil de conjugar, rigor,
organização, método, pontualidade. A primeira vez que fui convidado para
jantar, numa feira em Zurique, eram seis da tarde. Aceitei de bom grado,
perguntei onde e a que horas, responderam-se aqui e agora. Seis da tarde, a
jantar num daqueles barcos no lago de Zurique, percebi que era assim, pronto,
porque não haveria de ser.
Fui feliz. Tive como última residência um apartamento
num pequeno prédio de apenas quatro, em pleno campo ao sul da cidade, já a
caminho da fronteira francesa, ali bem perto. Uma daquelas aldeias lindas,
calmas, bem tratadas, com uma identidade própria, nos arredores da cidade
grande. Filhos a irem a pé para a escola, por vezes de carro, passeios de
bicicleta por aqueles caminhos estreitos a espreitar as vacas, um vizinho
americano, outro francês, um suíço e nós. Um pequeno jardim, mas suficiente
para se almoçar cá fora, o pôr do Sol atrás do Jura, ali ao lado.
Decorridos cinco anos, ainda mal tinha acabado de pôr
os cortinados nessa nova casa, fui abordado para seguir para Bruxelas, em
funções idênticas. Claro que comuniquei o que se passava ao então embaixador de
Portugal na Missão de Portugal junto da EFTA e do GATT, a que estava
formalmente ligado e a quem respondia na qualidade de detentor de estatuto
diplomático.
Na mesma semana, um convite para almoçar com ele, o
senhor embaixador, com o mesmo nome que eu ou melhor, eu com o mesmo nome que
ele, que isto das precedências existem para serem respeitadas. Pensei no que me
disse, ouvi quase incrédulo da sua boca, se quiser podemos coloca-lo numa
organização internacional da ONU aqui em genéve, seria bom para o país que
houvesse mais portugueses em postos de alguma responsabilidade, eu, ele,
gostaria que você pudesse aceitar a ideia, Bruxelas poderia esperar.
Não, Bruxelas não pôde esperar, o processo de nomeação
estava em marcha e, dada a então orgânica e estatuto das representações
externas de Portugal, ainda arranjava alguma crispação entre os ministérios do
comércio e dos negócios estrangeiros de que sairia um perdedor óbvio, eu.
Tempo
terceiro
Antes de partir para Bruxelas os meus vizinhos de
Bernex, assim se chamava a minha aldeia, ofereceram-me um pequeno e simples cocktail
de despedida e só então um deles, o suíço, me disse para ter cuidado, a capital
belga ele conhecia bem, tinha lá vivido uns anos, não se podia confiar neles
como se de suiços se tratassem. E mais não disse, mas tinha dito quase tudo. A
minha opinião foi muito diferente, gostei muito de Bruxelas, reatei assim o
ciclo iniciado no Congo, da colónia para a metrópole apenas vinte e cinco anos
mas que diferença de perspectiva.
Fiz a viagem para Bruxelas de carro, não é assim tão
longe, no dia 11 de Julho de 1982. A partir de uma certa altura comecei a
acompanhar pela rádio o arranque da final do campeonato do mundo de futebol, em
Madrid. Simpatizante da Itália, não podia ser de outro modo, na segunda parte a
Itália marcou três golos, a Alemanha apenas um, já nós estávamos no hotel no
destino que era o nosso, Bruxelas. O Dino Zoff tinha 40 anos e foi o
guarda-redes italiano, o Rossi o melhor marcador do campeonato.
Itália campeã do Mundo, venceu a Alemanha por 3-1.
Ganhámos, ganhámos, festejei com dois filhos, a alegria era grande, tão grande
que fomos festejar para o Îlot sacré, toda aquelas pequenas ruas na zona da
Grande Place pejadas de italianos entusiastas, residentes emigrantes e
turistas, muitas bandeiras italianas, muita cerveja e um só grito, Italia,
Italia, Italia. Foi bonito de se ver, foi bonito de viver, os latinos tomaram
conta da cidade. O CR 7 ainda não tinha nascido.
Voltei a festejar a conquista de uma campeonato, agora
da Europa, em 2016, tinham passado trinta e quatro anos, Portugal a cantar no
Marquês de Pombal, eu também lá, com alguns filhos e já alguns netos. Trinta e
quatro anos, o tempo passa e tem de se respeitar, o tempo, na justa medida em
que saibamos viver com ele, nele, não demasiado cedo nem demasiado tarde.
Isto começa bem, pensei eu naquele dia, em Bruxelas.
Se bem começou, assim continuou, a experiência
adquirida em genéve permitia-me uma maior certeza e segurança, apoiado por uma
equipa muito dedicada, dois, por sinal os dois homens, seriam mais ou menos da
minha idade, um até era mais velho, já cá não estão.
A Luisa C. portuguesa como eles e de uma família bem
conhecida ligada ao vinho do porto, com funções mais diferenciadas e meu braço
direito, a Linda, belga e a Chantal, filha de emigrantes portugueses, não sei
se mais portuguesa ou mais belga. Muito trabalho, empenho absoluto, o Grão
Ducado do Luxemburgo também no raio e âmbito da nossa actividade, um tempo de
transição, tanto lhes devo, razão de sobra para os manter bem presentes. Aqui.
Algumas empresas portuguesas em Bruxelas, excelentes
no apoio à promoção dos vinhos portugueses, um restaurante português de bom
nível, onde se realizava tudo o que fosse mais institucional da nossa
responsabilidade, um embaixador activo, os diplomatas de inexcedível cortesia
para comigo, talvez exuberante no que respeita à representação social do país.
Ainda a Missão de Portugal junto da Nato, a REPER,
representação permanente de Portugal junto da CEE, mas também aqui chegou o
momento de partir, um problema muito sério ocorrido em Paris aconselhava a
minha transferência para lá. Era 1986.
Sabedor dessa possibilidade, o embaixador chefe da
REPER falou-me no decorrer de um almoço, assim a modos que de despedida, que
tinha muito gosto em me colocar nos serviços da Comissão, agora que Portugal
tinha aderido era fundamental ter lá bons funcionários portugueses, eu poderia
fazer parte do lote, bastava que eu quisesse.
Longe de ter certezas, já era conhecida a longa
burocracia da comissão, alguns eurocratas que por lá fui conhecendo não me inspiravam
particularmente, os jogos internos de poder e contra poder entre os diversos
estados, enfim, se fosse hoje teria dito que sim, na época disse não.
Zarpei para Paris, um ano diabólico se seguiu
acumulando ambas as delegações, Bruxelas, ainda, Paris, também. Em Paris a
pensar no que havia para fazer em Bruxelas, em Bruxelas a pensar no que havia
para fazer em Paris, viagens constantes, voava pela autoestrada entre as duas
cidades, duas horas de viagem, mais uns minutos apenas, mais de trezentos quilómetros,
uma loucura, a cabeça numa cidade, na outra, por vezes já em nenhuma, mais
tarde, exausto.
Tempo
quarto
Passada a época de Paris, o regresso a Portugal.
Convite para continuar no que agora se chama agência,
mas preferi seguir o rumo empresarial, por isso a empresa a que tinha sido
requisitado quando fui para Genéve.
Privatizada que foi quase logo, optei por aceitar ir
para uma associação empresarial no Porto, do Porto, presidente dono de uma
empresa que tinha estado numa feira em Paris com o meu, nosso, apoio,
participação que correu muito bem e me deixou referenciado.
Já em Lisboa, uma orientação para o Japão, novo
espaço, nova cultura, novas perspectivas, articulação com as empresas
portuguesas trabalhando ou querendo trabalhar no Japão, no mercado japonês, com
as empresas japonesas em Portugal, em particular os grandes investidores e as
marcas de automóveis japoneses comercializados por cá.
Acumulando a partir de uma certa altura com alguns
projectos financiados pela Europa, para simplificar a designação, mais tarde
também professor convidado de uma universidade em matérias de marketing
internacional e internacionalização empresarial.
Um novo desafio, uma nova perspectiva, uma nova
realidade, nem sempre interessante naquele caso concreto, mas o supremo
privilégio de contactar com a juventude, de ensinar algumas coisas, mas também
de aprender, de me manter acordado e atento à vida.
Então no fim de uma aula a terminar cerca da hora do
jantar, uma chamada à reitoria, um convite para jantar logo a seguir. Era
conhecida o pendor maçónico da cooperativa de ensino proprietária daquela
universidade, da minha universidade, mas foi de todo uma surpresa, junte-se a
nós, seja um de nós, faremos tudo o que precisar se e quando precisar, estamos
cá para sermos fraternos, irmãos, maçons.
Não há almoços grátis, disse alguém. Nem jantares, senti eu. Nalguns casos
poderia ter sido muito bem remunerado, talvez, mas assim sou, livre de pensar
pela minha cabeça.
Opus
Dei, ONU, Comissão Europeia, Maçonaria, uma valsa a quatro
tempos, alguma vaidade por me terem convidado para um baile em que não dancei.
Ao romantismo da valsa prefiro a sensualidade do
tango.