terça-feira, setembro 16, 2008

Portos e Poeiras - II

Na continuação do texto anterior e do mesmo autor, um dos maiores especialistas nacionais nestas matérias, aqui fica mais um contributo esclarecedor

A AMPLIAÇÃO DO TERMINAL DE CONTENTORES EM ALCÂNTARA

Com a maior surpresa e sem qualquer discussão pública, em Abril de 2008, o País tomou conhecimento, pela comunicação social, da assinatura de um acordo entre as diversas entidades para a realização do empreendimento designado por Nova Alcântara/Nó Ferroviário/Terminal de Contentores. Este empreendimento prevê, em síntese: a ligação ferroviária desnivelada da linha de Cascais com a linha de Cintura, a ligação ferroviária desnivelada ao Terminal de Contentores e a ampliação deste terminal para o triplo da capacidade actual, de 350 000 para 1 000 000 de TEU´s (Twenty Equivalent Units). Pretende-se com a presente mensagem esclarecer e alertar a sociedade para a pretendida realização de um empreendimento que, além de ser injustificável, técnica e económicamente, e de ir causar enorme impacte ambiental negativo, constitui exemplo flagrante de interesses privados prevalecentes escandalosamente sobre os do País. Por muito estranho que isso pareça, até ao momento apenas surgiu na comunicação social um "grito"discordante, da autoria de Miguel Sousa Tavares, no Expresso do passado dia 3 de Maio, sob título: "Enche-se-me o coração de tristeza". No seu estilo contundente, critica a referida ampliação do Terminal de Contentores de Alcântara e a prorrogação por mais 27 anos, até 2047, do monopólio que a Liscont aí detém. Admite-se que a ausência de maior reacção por parte da sociedade se deve, principalmente, por um lado, a desconhecimento mais concreto desse plano e dos interesses subjacentes e, por outro lado, à dificuldade de antecipar as suas reais consequências sob os aspectos económicos, financeiros e ambientais. Por estas razões é importante e urgente todo o contributo que proporcione melhor esclarecimento e que alerte a sociedade sobre o que realmente está em causa. No final de 2006 o signatário escreveu um artigo de opinião publicado na revista técnica Engenharia e Vida sob título "A Expansão do Porto de Lisboa e o Fecho da Golada". Conforme exposto no respectivo preâmbulo, a sua preocupação dominante era que o Plano Estratégico do Porto de Lisboa, que então se encontrava na fase de conclusão, contemplasse a zona da Trafaria e Cova do Vapor na expansão que o porto teria que efectuar no curto/médio prazo. Conforme evidenciado nesse artigo essa zona é, sem qualquer dúvida, o melhor local de todo o estuário do Tejo para a construção de instalações portuárias modernas. Além disso, defendia que a realização dessa obra constituiria uma oportunidade excelente para reabilitar e estabilizar, com carácter permanente, a praia da Caparica. Este artigo teve alguma divulgação no meio técnico e, na sequência, o signatário foi convidado, a título pessoal, pela APL para dar parecer sobre a melhor solução a desenvolver nessa zona. De facto, nessa ocasião, o referido Plano Estratégico do Porto de Lisboa, na fase final em que se encontrava, apontava já para que um novo terminal de contentores se localizasse nessa zona a partir de 2010. O signatário procurou então dar a melhor resposta a essa solicitação da APL. Mobilizou o Prof. Eng. Mota Oliveira, que tinha sido o coordenador dos estudos e projectos relacionados com a obra do Fecho da Golada para a APL, e reuniu com o Director do LNEC, Eng. Matias Ramos e o corpo técnico do sector da engenharia costeira desta conceituada entidade. Em resultado, foi apresentada à APL a solução consensual que resolveria, simultaneamente, a expansão do porto e a recuperação e estabilização, com carácter permanente, da praia da Caparica. Essa solução foi muito bem acolhida pela APL e, inclusive, ficou apontado que esta entidade iria, a breve trecho, pedir ao LNEC a realização dos estudos necessários para bem a fundamentar. Na exposição apresentada nas Jornadas de Engenharia Costeira e Portuária, realizadas em Outubro de 2007 em Lisboa, o engenheiro coordenador, por parte da APL, da elaboração do referido Plano Estratégico, informava que as conclusões apontavam para um novo terminal de contentores na Trafaria. Notícia publicada em Novembro de 2007 em revista da especialidade reportava declarações do Presidente da APL que também iam nesse sentido. Contactos pessoais com a APL confirmaram que esta entidade estava em negociação com a Mota-Engil, proprietária da Liscont, tendo como objectivo avançar-se com o novo terminal de contentores na margem Sul. Com a maior surpresa, em Abril de 2008, o País tomou conhecimento, pela comunicação social, da assinatura do acordo entre as várias entidades para a realização da ampliação do Terminal de Contentores de Alcântara, integrada no citado empreendimento. É importante esclarecer que o terminal de contentores está em Alcântara em resultado das recomendações do Plano Orientador do Desenvolvimento Integrado dos Portos de Lisboa , Setúbal e Sines, elaborado no início da década de 1980 pela empresa americana TAMS, associada a empresas nacionais, no qual o signatário foi coordenador da contribuição nacional. Na ocasião, o terminal de contentores de Santa Apolónia encontrava-se praticamente saturado e era necessário encontrar uma solução com viabilidade a curto prazo. Essa solução foi então a de se adaptar o terminal de Alcântara, acabado de ser ampliado para carga geral, e de promover a sua adaptação para servir as necessidades da carga contentorizada até um horizonte temporal que, entretanto, já expirou. A solução preconizada para as acessibilidades terrestres consistia em manter, no complexo nó de Alcântara, as vias férreas de nível e construir passagens rodoviárias. Era essa a solução mais económica, como convinha por serem obras de carácter provisório. No futuro teria que ser escolhido outro local e a zona da Trafaria-Cova do Vapor foi um dos locais que ficavam reservados para esse efeito. É verdadeiramente assustador o plano das obras que agora decidiram fazer num local que, por um lado, não deixou de ser provisório para o fim em vista e, por outro lado, tem enormes dificuldades de concretização e, consequentemente, custos públicos muito elevados. De acordo com o que se sabe, compete à Mota-Engil e à APL ampliar as instalações do terminal, com a contrapartida da exploração do mesmo até 2047. Competirá ao Estado resolver o problema das acessibilidades. Contudo, agora já não é da forma mais económica acima referida, mas sim desnivelando as vias férreas de um nó extremamente complexo. A ligação ferroviária desnivelada ao terminal vai entrar na chamada Doca do Espanhol e, parte dessa doca "molhada", terá que ser transformada em doca "seca" para albergar o feixe das vias férreas. O signatário conhece bem as condições geotécnicas locais, em decorrência das intervenções que tem tido em projectos nessa zona, e, como especialista na concepção e no projecto de inúmeras docas secas no Pais e no estrangeiro (entre outras, as da Lisnave em Setúbal, a de Cadiz,a do Bahrain e algumas no Brasil) e de outras infra-estruturas de transportes, antevê as maiores dificuldades e, seguramente, custos muito elevados e difíceis de antecipar com rigor, para a concretização dessas obras que, salienta-se, são as que irão ficar por conta do Estado. Acresce que o desnivelamento das vias férreas no vale de Alcântara, além de sérios constrangimentos à realização de uma intervenção desta natureza numa área urbana tão congestionada, constitui uma extensa "barragem" transversal ao vale e obstáculo à ligação natural deste com o rio, com consequências hidráulicas e ambientais consideráveis. É de estranhar que, até ao momento, ainda não tenha aparecido séria contestação à realização destas obras por parte da oposição politica, quer a nível autarquico quer nacional, e de outras entidades, nomeadamente as ligadas ao ambiente. Com a ampliação do Terminal de Contentores de Alcântara a cidade de Lisboa vai ser enormemente prejudicada, por muitos mais anos, com uma instalação portuária dentro dela e cercada pelas zonas mais nobres da cidade pois, além de ficar emparedada com pilhas de contentores de 15m de altura e 1,5km de comprimento e com o triplo dos equipamentos actuais, irá sofrer um significativo aumento dos tráfegos de atravessamento rodo-ferroviário e de navios. Além disso, perde-se uma excelente oportunidade para reabilitar e estabilizar, com carácter permanente, a praia da Caparica. Além dos elevadíssimos custos que a ampliação do Terminal de Contentores de Alcântara e a construção das respectivas acessibilidades irão ter, teremos que continuar, por muitos mais anos, a gastar fortunas a colocar enrocamentos nos esporões da praia da Caparica, a alimentar com areias essa praia, a dragar essas mesmas areias que continuamente vão obstruindo o canal de navegação de acesso marítimo ao porto e a executar dispendiosas obras de protecção na margem direita do rio que, sem o banco do Bugio, fica exposta aos temporais do SW. Por fim, como se tudo o que antecede não bastasse, está actualmente a ser gasta outra fortuna na construção de um novo terminal de cruzeiros em Santa Apolónia, quando a cidade tem já o de Alcântara que, além de dispor dessa tradição e estar situado em local muito privilegiado para o efeito, tem todas as condições para, com custos relativamente reduzidos, ficar devidamente apetrechado com os requisitos exigidos num moderno terminal desta natureza. Para que era preciso construir outro de raiz? Só pode haver mesmo uma explicação: poderosos interesses disputaram esse espaço. Como é possível um País, com tantas carências, delapidar tão impunemente o valioso património que ainda dispõe, desperdiçar recursos em obras injustificáveis, mesmo com base no mais elementar bom senso, e como é que os seus principais responsáveis deixam que, tão descaradamente, os interesses privados prevaleçam sobre o interesse público? A situação faz realmente encher o coração de tristeza, como diz Sousa Tavares, e de revolta também.

José Manuel Cerejeira
Engenheiro Civil

As areias e outras poeiras - I

Amigo meu fez-me chegar o texto que passo a transcrever. Fala quem sabe....

AS AREIAS DA PRAIA DA CAPARICA

A comunicação social tem vindo a noticiar, com destaque, o lançamento de mais um milhão de metros cúbicos de areias para "alimentar" as praias da Costa da Caparica, segunda fase do projecto de enchimento, cuja empreitada tem o custo de 5,6 milhões de euros. Na primeira fase desse projecto, realizada em 2007, foi lançado meio milhão de metros cúbicos de areias e o presidente do INAG, dono da obra, anuncia já uma terceira fase, em 2009, com mais um milhão. Isto é, em apenas 3 anos, são gastos cerca de 14 milhões de euros para essa "alimentação" das praias, não contando com os custos das obras de emergência efectuadas em invernos passados, quando andaram a tentar deter o avanço do mar lançando-lhe areia. É de realçar, também, que nas empreitadas de reforço do dique marginal e dos molhes e da protecção do farol do Bugio com enrocamentos, realizadas recentemente, foram gastos mais cerca de 15 milhões de euros. Entendo que é necessário esclarecer e alertar a sociedade de que as obras em curso não vão resolver os problemas com carácter permanente. Com efeito, as areias lançadas para "alimentação" das praias, sem que seja reconstruido o banco de areia que ligava a Cova do Vapor ao Bugio, e que aí existia há muitos séculos, acabarão, a prazo e por acção do mar, por irem parar dentro do vale do rio Tejo. Aí se encontram, aliás, os mais de quarenta milhões de metros cúbicos de areias provenientes do imenso areal da praia da Caparica que há meio século nos maravilhava. São essas areias que obstruem constantemente o canal e obrigam, em certos locais, a frequentes dragagens de manutenção. Na realidade, o que se tem vindo a fazer é um enorme desperdício de dinheiro público.
Com o objectivo de restabelecer a situação preexistente, com a construção de um dique de areia, obra designada por Fecho da Golada, a APL lançou na década de 1990 um concurso público internacional para adjudicação da empreitada dessa obra. Ela envolvia um volume de aterro de 4,5 milhões de metros cúbicos, em grande parte resultante da dragagem para abertura do canal de navegação, e seria realizada numa única época de verão. Há notáveis artigos técnicos publicados em congressos internacionais da especialidade da engenharia costeira que descrevem e fundamentam a realização dessa obra.
Contudo, em consequência de uma aguerrida reacção por parte de alguns ambientalistas, com o apoio de alguma comunicação social, o Governo, contrariamente à recomendação dos técnicos mais qualificados do País na área da engenharia costeira e portuária, inclusivé do LNEC, por despacho de Junho de 1992, decidiu não autorizar a realização da obra. Infelizmente, agora o resultado desastroso dessa decisão está bem à vista de todos nós. Note-se que, apesar desta evidência, em artigo publicado no jornal Público em Julho de 2007, o Prof. António Lamas, escreve que "Em 1990, travei, juntamente com Carlos Pimenta, uma bem-sucedida luta contra o projecto que se designava por Fecho da Golada..."
Também em artigo recente, publicado no DN, o Eng. Joaquim Ferreira do Amaral afirma: "Não me conformo com a ideia de que as grandes decisões devem, cada vez mais, estar na mão de organismos independentes, apenas técnicos"... "chegou-se a acusar ministros do escândalo de decidirem contra o parecer dos serviços". Ora, foi precisamente o governo que ele integrava que tomou a acima referida decisão de não realizar uma obra que, na opinião dos serviços e dos técnicos, seria indispensável para evitar a progressão do fenómeno e, consequentemente, do desastre que veio a acontecer. Infelizmente, a região da Trafaria-Caparica-Bugio encontra-se dividida em três áreas de jurisdição: a da APL , que é delimitada a Sul pela recta que liga a Cova do Vapor ao Bugio, a do INAG, que superintende na costa situada a Sul dessa recta, e, finalmente, a autarquia de Almada, na área urbana. O INAG encarregou, há já alguns anos, o Instituto de Hidráulica da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto da realização do projecto das obras que têm vindo a ser feitas na orla costeira da praia, que consistem na construção / reforço dos diques aderentes e dos molhes com enrocamento e na alimentação da praia com areia. Contudo, importa referir, é que esta é uma solução parcial, que não resolve, de forma económica e com carácter permanente, o conjunto de problemas da citada região. Destina-se a dar, únicamente, satisfação aos requisitos da área de competência do INAG, ou seja, de proteger a orla costeira. Nesta óptica restrita, a solução até pode ser técnicamente correcta. Contudo, o que se considera necessário e urgente será levar a efeito uma solução que seja abrangente de toda a região, região esta que dispõe uma enorme potencialidade para diversos fins. Essa solução terá que resolver, da forma mais económica e com carácter permanente, o conjunto de necessidades e perspectivas das três entidades que têm a jurisdição nessa região: a reabilitação e a estabilização permanente das praias, a expansão do porto com abertura de canal de navegação estável e, finalmente, o ordenamento urbano. Essa solução compreenderá, certamente, a reconstrução do banco do Bugio, ou seja, a solução de base preconizada na década de 1990 pela APL, tendo em conta, obviamente, a realidade actual. Indiscutivelmente, a entidade que se encontra mais capacitada para realizar os estudos necessários para bem fundamentar técnicamente essa solução é o LNEC. Basta referir que foi esta conceituada entidade que estudou e concretizou o imenso areal da praia e calçadão de Copacabana e o aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, obras de que a engenharia nacional tanto se orgulha. Se isso não for feito, o País, que tão carente é de recursos, vai continuar, por muitos mais anos, a delapidar o seu património e a gastar fortunas para colocar enrocamentos em reforços dos molhes de protecção da praia da Caparica, para "alimentar" com areias essa praia, para dragar essas mesmas areias que continuamente vão obstruindo o canal de navegação de acesso marítimo ao porto e para executar dispendiosas obras de protecção na margem direita do rio Tejo que, sem o banco do Bugio, fica exposta aos temporais do SW. Prosseguir com o projecto em curso é, pois, continuar a deitar dinheiro ao mar. Apresentar à sociedade a ideia de que, com estas obras, se está a deter o avanço do mar, como alguns meios de comunicação o têm feito, é deitar areia aos olhos das pessoas, areia essa que lhes custa os olhos da cara...

José Manuel G. Cerejeira

Engenheiro Civil